Um superpoder | a leitura
Texto, à flor da pele, de Joana M. Lopes | Concurso Nacional de Leitura | Abrantes a Ler
Março 02, 2020
A partir da comunicação feita pela escritora Joana M. Lopes, na entrega de prémios da fase Municipal do Concurso Nacional de Leitura, em Abrantes, os Biblio Tubers propõem uma abordagem que, explorando sentidos e emoções, forme e esclareça educadores, pais e filhos.
O texto é expressivo e proferido com sentimento. Um texto que emociona e inspira.
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Um superpoder
Hoje sinto-me feliz, alegro-me sempre que encontro alguém que lê e isso acontece porque um escritor só existe quando os seus livros são lidos. Relativamente aos livros, podemos dizer que os há para todos os gostos: de receitas, de poesia, de factos reais ou nem tanto, de princesas, cavaleiros, de fadas ou vilões. Há também muitos livros povoados de heróis e às vezes, quando a realidade supera a ficção, há heróis que passam a morar na nossa vida. Eu tenho um grande herói na minha, foi a pessoa que me ensinou a usar o meu superpoder, a imaginação.
Esse grande herói é o meu pai. O meu pai não é o melhor do mundo, é igual a todos os pais que com o passar dos anos vão ganhando barriga e perdendo cabelos, o meu pai ressona, é distraído, está sempre a perder os óculos e as chaves do carro, tem dias que está cansado e que lhe doem os calos. O meu pai está longe do arquétipo do super-homem, não usa capa, nem meias de licra (facto que eu agradeço, pois creio que não o favoreceria). Apesar de andar sem capa e vestir roupas perfeitamente banais, o meu pai é o meu herói, é o meu herói desde que sou pequena. Há uma memória de infância em particular que enraíza esta imagem bonita que tenho dele: a recordação de o ouvir contar uma história, a mim e à minha irmã, antes de adormecermos. A narrativa era sempre a mesma “As Aventuras do Coelhinho Jeremias” e era totalmente inventada por ele. Nas noites em que nos presenteava com a sua imaginação, nós tínhamos direito a um episódio da epopeia de um coelho karateca que adorava cenouras e viajava pelo mundo. O coelhinho Jeremias enfrentava frequentemente as hienas que eram sempre as vilãs e vencia-as com a sua agilidade, criatividade e inteligência. Quando recordo esta imagem do meu pai, percebo o quão heróico era o gesto de nos vir aconchegar com esta história antes de entramos no mundo dos sonhos; é que estas memórias remontam ao tempo em que o meu pai acabara de perder a esposa e eu e a minha irmã, a nossa mãe.
Apesar da dor que eu sei que sentia, apesar do longo dia de trabalho, apesar do esforço de nos vestir, alimentar, dar banho, o meu pai guardava ainda um pouco da sua energia para nos deslumbrar com aquela história cheia de proezas de um pequeno roedor. Agora, passados muitos anos e com os meus olhos crescidos, percebo que este meu pai-heróico me ensinou, talvez sem saber, através do seu exemplo e da sua narrativa inventada, que a imaginação nos dá poder para resistir às adversidades da realidade.
Recuando à minha infância, percebo que não me lembro da maior parte dos presentes que o meu pai me deu em aniversários e natais remotos, porém recordo com total nitidez estes pequenos momentos em que com nada, o meu pai nos deu tudo.
A mensagem que eu gostaria que ficasse deste dia em que em Abrantes se celebram os livros e a leitura em voz alta é destinada aos pais e mães presentes: as histórias podem salvar os vossos filhos, porque as histórias lançam nas mentes das vossas crianças as sementes da imaginação. Uma mente treinada para ser imaginativa é uma mente capaz de solucionar problemas. Acredito que ultrapassei muitos desafios e até algumas catástrofes pessoais porque desde cedo fui treinada a imaginar. Ainda hoje, quando me deparo com um problema, imagino-o como um vilão, uma hiena que será vencida com inteligência e claro com o meu superpoder, a imaginação. Gosto muito da versatilidade desta minha aptidão inventiva, pois para além de me salvar no dia-a-dia também me permite fazer aquilo que amo: escrever livros.
Imaginar é mesmo o maior poder que existe e esta verdade não se aplica apenas a mim, aplica-se a todos nós. Tudo, mas mesmo tudo, começa no mundo das ideias (como dizia o filósofo Platão). O edifício em que estamos reunidos foi imaginado por alguém antes de ser construído, os carros que conduzimos, as roupas que vestimos, tudo começa dentro de mentes imaginativas. Um foguetão, uma sinfonia, um clássico da literatura, a cura para uma doença, são exemplos de coisas criadas pela pequena bola que temos em cima do pescoço. E porque tudo começa nessa bola e essa bola tem um potencial infinito, sugiro que ofereçam aos vossos filhos todas as oportunidades para tornarem essa esfera mais criativa. Qualquer momento é bom para o fazerem, mas há um que considero especialmente interessante: a hora bonita de ir para a cama. Neste momento que encerra o dia, e para o dia terminar em beleza, preencham as cabeças e coraçõezinhos dos vossos filhos com sementes de criatividade.
Os livros, e falo do alto dos meus trinta anos de experiência como leitora, são os maiores aliados que conheço para o efeito, são portáteis, leves, coloridos, mágicos. Se não quiserem comprá-los, requisitem-nos, é para isso que existem aquelas casas lindas chamadas bibliotecas. Se não perceberem nada de bibliotecas e tiverem algum receio de entrar numa, saibam que lá dentro estão criaturas adoráveis, prontíssimas para vos ajudar a escolher as melhores histórias. Estes seres encantadores chamam-se bibliotecários e também os há para todos os gostos!
No caso de serem pais ultra-aventureiros e quererem mesmo arriscar, podem também tentar criar as vossas próprias epopeias com coelhos, elefantes, acrobatas, astronautas, cozinheiros… inventem sem limites e sem medo, certamente que este exercício também vos fará bem e, o mais importante: os contos que contarem, sejam inventados ou de livros, vão ser o presente que perdurará no coração dos vossos filhos. Também tenho a convicção que se os vossos filhos vos ouvirem contar ou ler histórias, vão ser capazes de imaginar muito e um dia, com o superpoder da imaginação, talvez os meninos e meninas que hoje aconchegam nas camas, possam vir a ser os homens e as mulheres que vão idealizar um futuro melhor para o mundo!
Oiça o texto na voz da autora, Joana M. Lopes: